A saga dos dois jovens irmãos diante de um grid cheio de estrelas do esporte
Mas, infelizmente, ambos encerraram suas carreiras em acidentes fatais dentro das pistas – os conceitos de segurança eram menos rígidos então. Mais irmãos apaixonados pelo esporte seguiram o caminho dos Rodrigues, caso dos Schumacher (Michael e Ralp, F-1), Giaffone (Affonso e Zeca, ambos campeões de Stock Car) e vários outros.
No Brasil, a nossa maior dupla de irmãos em corridas teve seu auge nas décadas de 70 e 80. Wilson e Émerson Fittipaldi abriram definitivamente as nossas portas para as principais categorias de monopostos do automobilismo mundial. Chegaram à sonhada Fórmula 1 como pilotos e e tiveram a ousadia inédita de formar a Fittipaldi, primeira equipe sul-americana da principal categoria do esporte. Isso sem falar nas vitórias e títulos do mais jovem, Émerson.
Relembrando um pouco desta história, acompanhamos de perto no último final de semana dois jovens irmãos que começam a se destacar também por aqui. São promessas que em breve podem trilhar os caminhos de famílias que deixaram o seu nome gravado na história. Um bom começo eles tiveram, como mostramos a seguir.
Irmãos ao volante na Porsche Endurance 500 em Interlagos
A sexta-feira passada foi incrível para os Baptista. Naquele dia, eles foram a Interlagos para a atividade familiar que mais gostam. Nessas ocasiões, tudo começa como na maioria dos lares brasileiros: mesa posta, o café da manhã é servido com o casal Eduardo e Claudia e os filhos Vitor e Felipe à mesa. A conversa gira em torno de assuntos escolares, a lembrança da necessária ida ao supermercado na volta do autódromo e planos para talvez visitar familiares ou amigos mais tarde.
Todos prontos, Vitor, o mais velho com 21 anos, sempre dirige o carro da família – e não foi diferente dessa vez. O pai vai no banco da frente, mas sempre costuma trocar de lugar com Felipe, para acompanhar a esposa. Felipe, 16 anos, ainda não tirou carteira de motorista. Mas todos na família juram que ele não vai decepcionar quando chegar sua vez na autoescola. Por exemplo, naquele dia mesmo, ele cravaria a pole position para a principal prova longa duração de um dos mais tradicionais campeonatos nacionais, superando vários ex-pilotos de F-1, feras da Stock Car e pilotos de renome internacional. “O problema dele é fazer manobra”, brinca Vitor, zoando o caçula.
A pole de Felipe foi a primeira façanha dos jovens irmãos naquele fim de semana, quando seriam disputados os 500 km de Interlagos, corrida que tem tradicionalmente encerrado o campeonato de resistência Porsche Império Carrera Endurance Series. A pole seria conquistada em parceria com o competente argentino Estebán Guerrieri – os tempos são definidos pela média da melhor volta dos dois pilotos. O garoto, inclusive, registrou uma marca mais veloz do que a alcançada por seu parceiro. “Eu esperava que fôssemos rápidos, mas ficar com a pole position foi algo sensacional”, diz Felipe. “O grid está muito competitivo, com os 19 primeiros no mesmo segundo, então acho que fizemos um bom trabalho para a equipe”, continua o jovem piloto. Felipe, no entanto, já é conhecido no meio automobilístico por suas façanhas.
Também neste dia, a perda de pressão em um dos pneus tirou da briga pelo lugar de honra do grid uma das duplas mais fortes, justamente a composta pelo português Filipe Albuquerque e Vitor Baptista, de 21 anos. Eles largaram em nono.
Os dois irmãos defenderam a equipe Hero Motorsport, a mesma que havia vencido esta prova em 2018 com a dupla Nonô Figueiredo e Gaetano Di Mauro – e que, depois dessa façanha, promoveu a estreia de Gaetano na Stock Car na última corrida do ano. Figueiredo, agora, fazia as vezes de chefe de equipe – e sua experiência foi determinante para o sucesso do time.
No box, a pole do duo Felipe/Esteban fez os técnicos envolvidos explodirem em festa. Já se sabia que a aposta na dupla pela Hero seria acertada. O argentino Guerrieri era um velho conhecido de outras provas, incluindo a Stock Car, e por isso o time já sabia que podia contar com sua eficiência. Felipe trazia os percalços da inexperiência de alguém com apenas 16 anos de idade – mas que ao mesmo tempo vinha registrando marcos espetaculares. No início de 2019, ele tornou-se o mais jovem piloto a vencer uma prova da Porsche e de uma categoria de Gran-Turismo, ao ser o melhor em Interlagos com apenas 15 anos de idade. A organização do campeonato pleiteia o recorde junto ao Guinness, mas o processo ainda está em andamento.
A semana dos irmãos Baptista começou com a surpresa de serem convidados pela Hero Motorsport para que integrassem o time com dois pilotos estrangeiros. “Legal foi chegar em casa com essa notícia. Já seria bacana se tivessem convidado só um, mas a oportunidade pintou para os dois!”, conta Vitor. “Uma equipe com alguns dos melhores engenheiros da Stock Car e dois pilotos fortes do automobilismo internacional. Quem não toparia? Aceitamos na hora!”
A notícia veio com “bons problemas” para resolver. “Antes de tudo, claro, fomos pegar o ok da Academia Shell, que nos patrocina durante o ano todo. Eles curtiram a ideia, por que em 2018, com a Hero Motorsport mesmo, haviam feito a mesma coisa com o Gaetano Di Mauro, que acabou ganhando a prova com o Nonô Figueiredo”, lembra Felipe Baptista. “Tivemos que correr para fazer macacão, ajustar nosso banco e posição e questões ergonômicas no carro”.
“Foi bacana encontrar a equipe lá no autódromo e, também, recepcionar nossos parceiros gringos, na quinta-feira lá na pista”, continua Felipe. “Eu estava ansioso para mostrar ao Esteban o nosso carro e falar um pouco sobre ele, das dicas que eu tinha sobre esse Porsche e também para ver o que ele podia me passar. Viramos amigos na hora e desde o primeiro contato deu pra ver que formaríamos uma dupla muito sintonizada. Se puder, gostaria de correr novamente com ele como parceiro. É muito rápido e inteligente”.
Os treinos oficiais tiveram início e ficou claro que os dois carros da Hero Motorsport estavam entre os favoritos. Eduardo e Claudia, pais dos dois jovens pilotos, acompanharam tudo do box, meio angustiados, conforme confessou Dona Claudia.
Mas treino é treino. A corrida sempre é outra história. E essa seria longa e prometia muita emoção em dose dupla para a família. Já na volta de apresentação, veio o toque dramático do inesperado: uma roda do carro de Vitor Baptista/Filipe Albuquerque se soltou e obrigou a equipe a fazer a substituição no box, para que o duo largasse não do nono lugar – que havia obtido no classificatório – mas da última posição. “O Albuquerque é quem iria largar. Quando vi na TV do box que era o nosso carro, bateu uma angústia gigantesca. Um medo de perder essa oportunidade fantástica. Nesse momento nós pensamos: caramba, o que vai acontecer agora? A gente balançou, mas foi legal ver como ninguém se abalou de verdade. Mantivemos o foco e isso nos motivou a trabalhar duro, como um time unido mesmo, e com muita certeza de que estávamos fazendo o nosso melhor. Felizmente deu tudo certo”, disse o piloto da Hero Motorsport.
Lá na frente, Felipe Baptista e Esteban Guerrieri seguiam um script perfeito. Largaram na pole e permaneceram na liderança a maior parte da corrida até que fosse superada metade das 177 voltas – ou mais de 250 km de competição. “Foi quando uma mangueira de radiador furou. Rapidamente perdemos praticamente todo o líquido do sistema de arrefecimento. Foi difícil assimilar aquilo na hora, mas a gente tinha que fazer o possível para seguir na corrida – e conseguimos. Mas foi uma pena pois talvez eu e o Esteban conseguíssemos fazer uma dobradinha com o Vitor e o Albuquerque. Seria um momento fantástico pra gente”, detalha Felipe.
Mais atrás, Filipe Albuquerque iniciou uma recuperação sensacional para a dupla. “O Filipe fez uma largada muito boa e conseguiu ganhar várias posições”, conta Vitor. “Em menos de uma hora a gente já estava brigando para nos colocar entre os seis primeiros”, observou. A chuva que caiu no terço final da prova foi outro elemento de incerteza para todos, mas em especial para quem tentava uma prova de recuperação. “Quando começou a chover veio aquele momento da pergunta de um milhão de dólares: qual pneu devemos usar, de chuva ou pista seca? Eu e o Filipe dissemos à equipe que preferíamos continuar com pneus de pista seca”, conta Vitor. “Por estarmos lá na pista, tínhamos uma boa condição de fazer a leitura correta de como o piso estava se comportando. E avaliamos, felizmente, que daria para seguir com pneus slick. Isso foi realmente importante para nos manter brigando pela ponta até a última volta da corrida”.
Se Filipe teve a incumbência de fazer a largada, foi Vitor quem se viu com a missão de terminar a corrida e receber a bandeirada. “No finalzinho eu pensei: vou cruzar a linha de chegada em primeiro depois de ter largado em último! Mal podia acreditar”, conta ele. “Depois de tanta briga e dificuldade, de ter largado em último, da tensão, de pilotar na chuva e no seco, tinha mesmo que estar muito focado. Quando o chefe de equipe veio no rádio e disse: “parabéns, nós vencemos a corrida”, deu vontade de tirar o cinto e pular pra fora do carro de alegria. Foi demais, nunca vou esquecer desse dia”.
Mas algumas imagens disseram mais do que os pilotos conseguiram expressar. Depois da bandeirada, já no box, os dois irmãos se abraçaram e não seguraram as lágrimas. O gesto contagiou a equipe. Foi um daqueles momentos que explicam por que muitas vezes o que acontece sob um capacete, dentro do carro ou no box ainda hoje é capaz de levar milhares de pessoas aos autódromos do mundo inteiro. É o esporte em estado puro.